quinta-feira, março 31

Schiavo.

Triste o seu destino, senhora Schiavo. Tornou fashion discutir vida e morte como possibilidades. Se tivesse fé, faria uma prece pela sua alma.

Clipe.

Um menino dormia sobre uma saída de ar do túnel do Anhangabaú. Uma viatura da polícia militar encostou, dela saíram dois pê-emes. Dois outros meninos, que estavam por ali, largaram seus saquinhos amarelos de respirar e entraram quase que voluntariamente no banco de trás. Como o outro não acordava, um pê-eme cutucou-o com o bico do coturno. Deve ter-se assustado com os faróis da viatura e o homem fardado que, com a cabeça, o convidava para juntar-se aos dois outros meninos. Todos na viatura, andaram poucos metros, até outra saída de ar e mais um menino, enrolado na própria camisa. Este, demorou mais para acordar. O pê-eme teve que se abaixar e puxar a camisa, até que aparecesse a assustada cabeça. Enquanto o último menino entrava na viatura, mais uma meia dúzia deles corria ao redor do carro, zombando dos policiais. Ontem à noite, na Rua Formosa.

Foto.

Um mongolóide grisalho e abatido, de barba mal-feita e olhar perdido segura o alto portão de ferro, com as mãos fazendo meias-voltas nas grades. Uma senhora enrugada, de cabelos brancos e compridos, atrás dele, passa-lhe a mão sobre os cabelos da nuca e ensaia um meio-sorriso. Hoje de manhã, na Vila Olímpia.

quarta-feira, março 30

Limites.

Montalbán fez Pepe Carvalho, o mais longevo detetive catalão, dizer que "um dos maiores prazeres da vida é impor limites a si mesmo". O mesmo, claro, não se aplica a filhos de quatro anos.

terça-feira, março 29

No comments.

“Faz dois séculos - disse Settembrini - vivia no país dos senhores um velho poeta, um excelente conservador, que atribuía suma importância à beleza da caligrafia, porque, segundo a sua opinião, esta conduzia à beleza do estilo. Deveria ter ido um pouco mais longe e dizer que um belo estilo conduz a belas ações. Pois escrever bem já era quase pensar bem, e daí a agir bem não havia muita distância”. (Thomas Mann, A Montanha Mágica).

Sérgio Ferro.

O mais próximo que se pode chegar de Michelângelo.

Parágrafo terceiro.

Nasceu em Palmeira dos Índios. Mas veio com a mãe para São Paulo, ainda no colo. Só um resto teimoso de sotaque denunciava sua procedência: pai e mãe nada tinham de Cariri ou de Xucuru; eram de pele clara e olhos verdes, legítimos descendentes de Maurício de Nassau.

Eram primos de sangue, mas o padre não fez ressalva nenhuma: Graciliano, que já beirava os quarenta, era dono da maior venda da região e tinha fama de matador. A mãe, Iamar, mal completara dezesseis anos e era, de longe, a mais cobiçada da cidade. Se ficasse solteira muito tempo, certamente traria desgraça para um cabra, ou dois.

Casaram e Iamar engravidou cedo. Como a casa era nova, e Graciliano exigente, fazia de tudo: plantava e colhia da horta dos fundos; alimentava a vaca e os porcos; cozinhava; lavava e esfregava o chão; cosia as roupas; preparava o enxoval do bebê. Talvez pelo muito esforço, a bolsa estourou antes da trigésima-quinta semana. Teve que ser levada às carreiras ao posto-de-saúde, para parir.

O médico, recém-vindo de Pernambuco, adivinhou no cansaço do corpo de menina uma vida dura e previu muitos partos; morte na juventude. Chamou Graciliano quando ainda tinha aberto o corte da cesária, recomendou laqueadura, falou em risco de vida, e exigiu decisão imediata. Graciliano, assustado com a fluência do moço, só fez anuir, de cabeça baixa. Não compreendera que nunca mais teria outro filho de Iamar.

Quando soube da esterilidade da mulher, culpou-a e a esbofeteou sem remorsos. Queria filho homem; queria muitos filhos, porra!

Afastou-se da casa, da mulher e da filha. Só ia ao quarto bêbado e mudo.
Iamar agüentou o que pôde e agarrou-se angustiada à filha, única, única. No fim de dois anos de casamento, viu os olhos embriagados de Graciliano mirarem a pequena, com a boca sorrindo saliva ácida. Passou seis meses vendendo o que podia vender, e ajuntando cada trocado. Pegou a menina e, num domingo de sol, entrou num ônibus que, depois de dias na estrada dura, as depositou no Terminal Rodoviário do Tietê.

segunda-feira, março 28

Obsolescências.


Fé, certeza e esperança.

Não me lembro de ter visto, com tanta clareza, a oposição entre ciência e religião, como no caso da senhora Terri Schiavo – cujo sobrenome, aliás, parece ter sido escolhido sob medida.

Num canto do ringue, sempre com calções brancos, a ciência garante que a senhora Schiavo não tem mais nenhuma percepção do mundo exterior, não sente dor, não sente felicidade, não reage a nada. E que os esboços de sorrisos e as expressões alteradas que sua família captou em vídeo, para usar como prova judicial, não são mais que reflexos instintivos.

No outro canto, com calções eternamente negros, a religião garante que não há certeza do fim da vida que, dom supremo, não pode ser interrompida voluntariamente.

Invejo, nos médicos que declararam a “morte cerebral”, a certeza de que não há mais vida. Da mesma forma, invejo, nos religiosos, a fé que os leva a ver alma até onde não há mais vida.

Só não invejo os pais da senhora Schiavo – estes, embora se diga que têm apenas fé, têm mais que isso: têm esperança, que é sentimento muito mais cego, muito mais irracional e, curiosamente, muito mais humano. É cruel vê-la despedaçada nos tribunais.

quinta-feira, março 24

Do nada a lugar nenhum.

Somos células do cérebro de D'us: estamos em permanente intérfase.

quarta-feira, março 23

Explicando.

Melhor explicar o último post, antes que eu esqueça porque o escrevi. É que é quase uma fixação nacional a comparação com os EUA: foram descobertos na mesma época, ambos eram colônias, etc. Mas um deu errado, outro deu certo. Por quê? A explicação mais comum culpa o catolicismo português pelos nossos erros e atribui ao protestantismo anglo-saxão o desenvolvimento dos primos do Norte - tudo nos conformes de um livrinho antigo, de Max Weber. Mas há um livrinho mais antigo, o que eu mencionei ontem, que traz uma explicação, senão mais factível, ao menos mais atual: é que, aqui, falta classe média – e, por isso, falta classe média no governo. Não é que ninguém da classe média seja eleito – é que, quando se é eleito, parece haver uma metamorfose, que apaga da lembrança as macarronadas de domingo. Vivemos, por isso, nas mãos da aristocracia e da plebe. E, por isso, vamos mal: “Aqueles são ciumentos, estes desprezadores, vícios contrários à amizade e portanto ao regime político que tem sua origem na benevolência” (o Estagirita, de novo).

terça-feira, março 22

Que Weber, o quê.

“Em toda parte onde uns têm demais e outros nada, segue-se necessariamente que haja ou democracia exacerbada, ou violenta oligarquia, ou então tirania, pelo excesso de um ou de outra. Pois a tirania surge de igual modo da insolente e desenfreada democracia e da oligarquia, desastre que, como explicaremos ao tratar das revoluções, acontece muito menos entre tais pessoas de nível médio.” (Aristóteles, Importância e Excelência da Classe Média; “A Política”).

segunda-feira, março 21

Uf.

Em homenagem ao post anterior almocei no Alfredo’s. Espero não causar rupturas na camada de ozônio.

A Salvação pelo Luftal.

Domingo foi o “Dia Mundial Sem Carne”. De um Garibaldo barbado, numa das esquinas da Paulista, recebi um panfleto de um grupo de vegetarianos, que exorta a evitarmos o consumo da carne. Estes, os argumentos:

“Faça isso pela fome mundial!
A maior parte dos grãos e da soja produzidos hoje no planeta destina-se à produção de rações utilizadas na engorda dos animais de corte. Se estes grãos fossem usados diretamente na alimentação humana, haveria comida mais do que suficiente para todas pessoas do mundo. Parece utopia, mas não é: acabar com a fome é possível!

Faça isso pelo meio ambiente!
Você sabia que florestas inteiras são devastadas para darem lugar a pastos? E que a emissão de gás metano, expelido pelo gado bovino, é uma das principais causas de poluição do ar e destruição da camada de ozônio? Pense nisso!”

Pensei nisso e achei esquisitos os argumentos: afinal, carne também mata a fome e o plantio de soja também derruba florestas (raios, está acabado, até, com o Pantanal). Comecei a ver aí o dedo da Monsanto, da Bunge ou da Cargill.

Mas, em seguida, tudo fez sentido: os gados comem grãos e soltam puns que acabarão conosco. Por isso, temos que deixar de comer o gado e passar a comer o que eles comem. O gado morrerá de fome, e aí, os nossos puns é que serão fatais.

Voltaremos, enfim, ao canibalismo, agora justificado: como-o, porque peida!

sábado, março 19

Teolética.

- Para eu ser um cara de direita, falta-me acreditar em deus.
- Gozado. Para mim, em sendo de esquerda, é justamente isso que me sobra...

sexta-feira, março 18

Parágrafo segundo.

No espelho, sua cara amarrotada decepcionou. Esperava ver-se como estivera na cama, mas encontrou-se sólida, pálida. Lavou-se e foi à copa. A Celestina, negra de pouco mais de trinta anos, que estava com o casal há cinco e achava que tinha alguma ascendência sobre ela, já tinha preparado o café, comprado pão fresco e dividido alguns papaias que, tirados da geladeira há pouco, suavam sobre uma travessa de metal.
Sentou-se num dos banquinhos, de costas para a mesa. E só para provocar a Céu, pegou um dos pãezinhos frescos da cestinha de vime. A negra largou o pano de prato, com que enxugava as mãos.
- Ô menina folgada! Tu é babá, não é patroa! Sai daí, que eu acordo o dotô Sílvio, e é pra já.
- Deixa de ser besta, mulher. Um pãozinho, eles não vão nem sentir falta. E eu tô com uma fome... Sonhei com homem...
- Não tô interessada nas tuas sacanagens. Come o pão logo e se arruma, que a dona Patrícia já acordou, ouvi o barulho da descarga. Daqui a pouco, vai te chamar pra vestir as crianças.
Comeu o pão, bebendo café com leite, bem doce, num copo de geléia, de vidro grosso. Estava, mesmo, com muita fome. E cansada.

Fart.


Poucas coisas desmoralizam mais uma revolução armada do que bonés bordadinhos e camisetas silcadas com o logo dos guerrilheiros.

Bela Porcariazinha.

Quem não quiser jogar tempo fora, não vá aqui. Se não bastam estas razões, explico: a Bela nasce branca, é negra por alguns segundos (quando tem lá uns cinco anos), e depois vira uma cantorinha branca e fanha, que aos dez anos decide casar com um japonês gordinho (os pais, claro, não podiam forçar o miyai, nesta época tão divertida). E lá se foram R$ 125,00, bem suados, latrina abaixo.

Parágrafo primeiro.

O quarto, pouco maior que um guarda-roupa, e a cama de colchão fino, não impediram que tivesse uma incomum noite de bons sonhos: caminhava pela Oscar Freire, sem o maldito cachorro e sem a fantasia branca de babá (não se lembrava bem, mas parece que estava nua; ainda guardava uma sensação boa, de vento na pele em dia de calor). Todos os homens olhavam para ela, fazendo caras de propaganda. E não eram só os porteiros dos prédios e os seguranças de terno – os bacanas, de dentro dos carros, de dentro das lojas, de dentro dos restaurantes, também se viravam para desejá-la. Espreguiçou-se com um sorriso e foi ao banheiro, de camisola e sem sutiã. Os mamilos ainda registravam a brisa sonhada.

quinta-feira, março 17

So Simple, Yet So Hard...

See how the sense changes with the punctuation in this example:

Tom locked himself in the shed. England lost to Argentina.

These two statements, as they stand, could be quite unrelated. They merely tell you two things have happened, in the past tense.

Tom locked himself in the shed; England lost to Argentina.

We can infer from the semicolon that these events occurred at the same time, although it is possible that Tom locked himself in the shed because he couldn’t bear to watch the match and therefore still doesn’t know the outcome. With the semicolon in place, Tom locking himself in the shed and England losing to Argentina sound like two things that really got on the nerves of someone else. “It was a terrible day, Mum: Tom locked himself in the shed; England lost to Argentina; the rabbit electrocuted itself by biting into the power cable of the washing machine.”

Tom locked himself in the shed: England lost to Argentina.

All is now clear. Tom locked himself in the shed because England lost to Argentina. And who can blame him, that’s what I say.

It is sad to think people are no longer learning how to use the colon and semicolon, not least because, in this supreme QWERTY keyboard era, the little finger of the right hand, deprived of its traditional function, may eventually dwindle and drop off from disuse. But the main reason is that as Joseph Robertson wrote in an essay on punctuation in 1785, "The art of punctuation is of infinite conse
quence in writing: as it contributes to the perspicuity, and consequently to the beauty, of every composition”. Perspicuity and beauty of composition are not to be sneezed at in this rotten world. If colons and semicolons give themselves airs and graces, at least they also confer airs and graces that the language would be lost without.

From: Eats, Shoots & Leaves, by Lynne Truss.

Gratias tibi ago.

Pouca gente faria isto, de graça. Vivas ao Professor HENERIK KOCHER!

quarta-feira, março 16

Carecas.

Almoçando com pessoas geniais, hoje, chegamos à conclusão de que um dos piores momentos da vida de um careca deve ser o dia da inauguração pública da peruca.

Filosofia.

Olavo de Carvalho, nome cuja simples pronúncia causa goosebumps a todos os politicamente corretos, e riso nervoso à esquerda em geral, tem diversas definições que muitos de nós incorporam, mas não conseguem verbalizar por completo. Uma delas recebi por e-mail, com o anúncio do curso de filosofia. Ei-la:
“... a filosofia nunca pode constituir mera atividade profissional e universitária, desligada da intimidade pessoal daquele que a exerce. Ela é, por definição, exercício da autoconsciência, que busca sistematicamente os nexos entre o saber, o ser e o agir, na unidade da consciência individual do filósofo.
A unidade do saber, do ser e do agir é a meta de toda filosofia: é a conquista da sabedoria.
Buscando constantemente o nexo entre conhecimento e autoconsciência, o filósofo (ou, o que é exatamente o mesmo: o estudante) submete-se à disciplina da sinceridade, que se torna, de maneira lenta, gradual e segura, um caminho de ascese espiritual: o desenvolvimento do senso pessoal da verdade.”
Isso, só na propaganda do curso...

terça-feira, março 15

O Melhor do Brejil.

Eu já achei um baita absurdo todo o fuzuê sobre o cara que achou US$ 10 mil, devolveu ao dono, ganhou emprego, foi recebido por Sua Excelência e virou garoto-propaganda.

Mas a Globo acaba de se superar e de superar o melhor do Brejil: um casal achou uma câmera fotográfica em Trancoso (provavelmente no Quadrado, provavelmente de alguém completamente chapado) e, vejam vocês, quer devolver. Foi ao Fantástico e o filho trintão disse, juro, que o seu pai voltou a ser o seu herói, com essa atitude bacanérrima.

Era bom avisar esse povo: apropriar-se de coisa alheia é crime, previsto no artigo 169, do Código Penal. E pode gerar detenção, de um mês a um ano.

Distraídos.

Todo mundo já criticou até o Português da plaquinha dos elevadores paulistanos que, de fato, ficariam melhor assim: “Antes de entrar, verifique se o elevador está parado neste andar” (para quem não é daqui, a placa diz: "Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar").

Mas a pergunta que fica é a seguinte: se alguém é distraído o suficiente para entrar num elevador que não está lá, é razoável supor que vá ler a porra da plaquinha?

segunda-feira, março 14

A Senhora do Intestino.

É razoavelmente aceito, entre os bem-pensantes, que as novelas de TV (e sobretudo as da Globo) são uma grande porcaria, com muito pouca utilidade. Sua linha narrativa repetitiva vicia o pensamento na papinha pronta, exigindo apenas deglutição, nenhuma mastigação. E, além disso, enfiam-se na massa informe que se engole sem pensar, além do merchandising covarde, valores que os autores, os editores, os produtores, seja lá quem for, querem que sejam absorvidos. E tome sapatões bonitinhas, viados bem-resolvidos, comunistas desprendidos, contraventores robinhudescos, adúlteros justificados...

Isso tudo, até entendo. O que não me passa pela moela é que certos caras, bem postos na mídia, que poderiam botar avisos sobre esse lixo tóxico, se põem a fazer análise lítero-sociológicas como esta.


É um saco. E o crítico, que eu tinha em alto conceito, vira uma tia tricoteira, babando pelo próximo capítulo.

Metalinguagem Culposa.

sexta-feira, março 11

The Smell of the Music.

Sempre achei que as pessoas bacanas deveriam ter uma trilha sonora própria, que as acompanhasse enquanto andam. Mais ou menos como o perfume de certas moças, que brisam pela gente e deixam cheiros imperdíveis, irremediáveis e sobretudo irrepetíveis.

As pessoas teriam suas trilhas como têm perfume: tomariam banho, passariam perfume, vestir-se-iam (eita, como fazer mesóclise na frente dos outros é feio!), vaporizariam suas trilhas e sairiam pelas ruas, odorizadas e musicadas, podendo fazer pose de filme em cada acorde.

Mas depois lembrei que tem gente que usa coisas do boticário e seria bem capaz de derramar um litro de um bruno&marrone pescoço abaixo, sem nenhum pudor - e dei graças a deus pelos headphones.

Sideways.

Tudo é circunstância.

Uma vez, bestamente, me meti a fazer um curso para someliê; achava chique, sei-lá. Mas fiz, confesso. E um dos caras, obviamente italiano, disse o que é definitivo, em vinho: tudo é circunstância.

Você pode dizer que um vinho tem taninos fortes (o que é bem viado de se fazer, aliás); você pode meter seu nariz na taça e descobrir aromas de vanilla, canela, mel, o cacete-a-quatro. Não sem passar por imbecil, você pode até girar a taça, vendo se as lágrimas escorrem depressa ou devagar, se são finas ou grossas, revelando que o vinho tem mais ou menos álcool e como o álcool está nele integrado. Você pode enfim, racionalmente, classificar um vinho (têm até umas tabelinhas, também bastante aviadadas, aliás).

Mas o vinho só é bom, você só gosta do vinho, quando a circunstância é boa: a comida é boa, o clima é bom, a companhia é boa, sua roupa não está apertada, seu estômago está em paz.

Experimente tomar um Romanée-Conti acompanhando um lambari frito, no calor de Ribeirão Preto, junto com um monte de advogados discutindo agravos de instrumento ou mandados se segurança, com as calças um número menor e com gases barulhentos querendo escapulir.
Eu ainda não tive essa experiência, mas o vinho, decerto, vai ser uma porcaria.

Nosocômio.

Tenho que responder uma ação em que o advogado da autora (uma moça que foi atropelada por um ônibus há 20 anos e só agora descobriu que a culpa não foi dela) diz, juro:

“Nos tempos hodiernos a sociedade buscou meios de penalizar o infrator no local onde mais drasticamente o atingisse. E o ponto nevrálgico, que durante a revolução francesa era o pescoço, foi transferido para o bolso. Há vários doutrinadores que pensam da mesma forma, dando a visão do que é o dano e quando ocorre, e interpretando que é pagando pelo dano que o agente lesionante repara os malefícios de seus atos.”

Ele também comete um “neste nosocômio, restou cerca de um mês internada...”

Não sei como rebater essas coisas: se for estúpido, como tenho vontade, o juiz fica com dó; se não falar nada, fica a sensação do pum alheio no elevador – quem não reclama, é o autor...

Mas se o meu advogado dissesse que eu restei internado num nosocômio, juro que eu passava a procuração para outro.

quinta-feira, março 10

Estrambótico da Silva Jr.

Vi num outro blog uma discussão sobre nomes esdrúxulos de pessoas. Sempre lembro, nessas horas, de uma senhora chamada Jaffa Lei, que meu pai jura que é de verdade. Quantas vezes, deus-do-céu, essa moça não teve que repetir o nome e pausar, muito: Jaffa (três minutos) Lei. E diz que o pai dela só não pôs o nome de Contra, na outra filha, porque o escrivão não deixou – provavelmente porque era contra a lei.

Por falar em escrivão, dizem que o Millôr era pra chamar Milton, mas o escrivão (que, na época, escrevia à mão) exagerou nos floreios, cortou o mais para a frente, em cima do ô, e fez um n parecido com r. E, pronto: estava criado mais um nome nacional.

Mas tem mesmo um povo que abusa: no dia em que fui registrar o Matheus (era prá ser Dante, era prá ser Dante!), tinha um cara discutindo com o escrivão – queria, porque queria, registrar o filho como Speed Racer...
Um aluno da minha mãe, pior que isso, chama Letisgo. Ela perguntou, à que pariu a criatura, da onde sacou a pérola e ela, com ares de sabida: “É inglês. Pronuncia-se let’s go...”


Quintas-feiras são assim.

Saí de casa cedo e minha filha, de quatro anos, que eu levava para a escola, passou o caminho todo ganindo por um cachorro. Eu não quero um cachorro.
Depois, subindo a 9 de julho, com a lentidão de um caminhão que ia na frente, caindo aos pedaços, tive tempo de acompanhar um gordinho que derretia em cima de uma bicicleta fininha, ameaçando empalá-lo. Certos gordinhos não têm jeito: suado, vermelho e esbaforido, certamente orgulhoso do exercício, onde apeou o obeso atleta? Na pastelaria do Trevo...
Quase no estacionamento, tive que esperar uma madame que acabava de acertar um pedestre com o seu C3 prateado, cujo retrovisor direito pendia, desfalecido com o choque. O atropelado gemia e manquitolava, enquanto tomava nota da placa do carro. E a madame, certamente apavorada, do meio da rua – e sem sair do C3 - falava ao celular, para um marido, certamente atônito.
Consegui passar de fininho, estacionei e comecei a caminhada até o escritório. No caminho, meia dúzia de policiais civis tentavam enfiar um esfarrapado menino-homem de rua num pequeno Corsa, viatura. A cara de dor e de surpresa do rapaz me tirou a certeza de que esse povo não tem nada a perder. Perto dali, pronta para correr, uma negra, pequena e magra, de rosto cadavérico, gritava esbugalhada, para ninguém, algum protesto ininteligível.
Assim começou hoje. E eu não vou comprar cachorro nenhum.