quinta-feira, março 31
Clipe.
Um menino dormia sobre uma saída de ar do túnel do Anhangabaú. Uma viatura da polícia militar encostou, dela saíram dois pê-emes. Dois outros meninos, que estavam por ali, largaram seus saquinhos amarelos de respirar e entraram quase que voluntariamente no banco de trás. Como o outro não acordava, um pê-eme cutucou-o com o bico do coturno. Deve ter-se assustado com os faróis da viatura e o homem fardado que, com a cabeça, o convidava para juntar-se aos dois outros meninos. Todos na viatura, andaram poucos metros, até outra saída de ar e mais um menino, enrolado na própria camisa. Este, demorou mais para acordar. O pê-eme teve que se abaixar e puxar a camisa, até que aparecesse a assustada cabeça. Enquanto o último menino entrava na viatura, mais uma meia dúzia deles corria ao redor do carro, zombando dos policiais. Ontem à noite, na Rua Formosa.
Foto.
quarta-feira, março 30
Limites.
terça-feira, março 29
No comments.
Parágrafo terceiro.
Eram primos de sangue, mas o padre não fez ressalva nenhuma: Graciliano, que já beirava os quarenta, era dono da maior venda da região e tinha fama de matador. A mãe, Iamar, mal completara dezesseis anos e era, de longe, a mais cobiçada da cidade. Se ficasse solteira muito tempo, certamente traria desgraça para um cabra, ou dois.
Casaram e Iamar engravidou cedo. Como a casa era nova, e Graciliano exigente, fazia de tudo: plantava e colhia da horta dos fundos; alimentava a vaca e os porcos; cozinhava; lavava e esfregava o chão; cosia as roupas; preparava o enxoval do bebê. Talvez pelo muito esforço, a bolsa estourou antes da trigésima-quinta semana. Teve que ser levada às carreiras ao posto-de-saúde, para parir.
O médico, recém-vindo de Pernambuco, adivinhou no cansaço do corpo de menina uma vida dura e previu muitos partos; morte na juventude. Chamou Graciliano quando ainda tinha aberto o corte da cesária, recomendou laqueadura, falou em risco de vida, e exigiu decisão imediata. Graciliano, assustado com a fluência do moço, só fez anuir, de cabeça baixa. Não compreendera que nunca mais teria outro filho de Iamar.
Quando soube da esterilidade da mulher, culpou-a e a esbofeteou sem remorsos. Queria filho homem; queria muitos filhos, porra!
Afastou-se da casa, da mulher e da filha. Só ia ao quarto bêbado e mudo.
Iamar agüentou o que pôde e agarrou-se angustiada à filha, única, única. No fim de dois anos de casamento, viu os olhos embriagados de Graciliano mirarem a pequena, com a boca sorrindo saliva ácida. Passou seis meses vendendo o que podia vender, e ajuntando cada trocado. Pegou a menina e, num domingo de sol, entrou num ônibus que, depois de dias na estrada dura, as depositou no Terminal Rodoviário do Tietê.
segunda-feira, março 28
Fé, certeza e esperança.
Não me lembro de ter visto, com tanta clareza, a oposição entre ciência e religião, como no caso da senhora Terri Schiavo – cujo sobrenome, aliás, parece ter sido escolhido sob medida.
Num canto do ringue, sempre com calções brancos, a ciência garante que a senhora Schiavo não tem mais nenhuma percepção do mundo exterior, não sente dor, não sente felicidade, não reage a nada. E que os esboços de sorrisos e as expressões alteradas que sua família captou em vídeo, para usar como prova judicial, não são mais que reflexos instintivos.
No outro canto, com calções eternamente negros, a religião garante que não há certeza do fim da vida que, dom supremo, não pode ser interrompida voluntariamente.
Invejo, nos médicos que declararam a “morte cerebral”, a certeza de que não há mais vida. Da mesma forma, invejo, nos religiosos, a fé que os leva a ver alma até onde não há mais vida.
Só não invejo os pais da senhora Schiavo – estes, embora se diga que têm apenas fé, têm mais que isso: têm esperança, que é sentimento muito mais cego, muito mais irracional e, curiosamente, muito mais humano. É cruel vê-la despedaçada nos tribunais.
quinta-feira, março 24
quarta-feira, março 23
Explicando.
terça-feira, março 22
Que Weber, o quê.
segunda-feira, março 21
Uf.
A Salvação pelo Luftal.
Domingo foi o “Dia Mundial Sem Carne”. De um Garibaldo barbado, numa das esquinas da Paulista, recebi um panfleto de um grupo de vegetarianos, que exorta a evitarmos o consumo da carne. Estes, os argumentos:
“Faça isso pela fome mundial!
A maior parte dos grãos e da soja produzidos hoje no planeta destina-se à produção de rações utilizadas na engorda dos animais de corte. Se estes grãos fossem usados diretamente na alimentação humana, haveria comida mais do que suficiente para todas pessoas do mundo. Parece utopia, mas não é: acabar com a fome é possível!
Faça isso pelo meio ambiente!
Você sabia que florestas inteiras são devastadas para darem lugar a pastos? E que a emissão de gás metano, expelido pelo gado bovino, é uma das principais causas de poluição do ar e destruição da camada de ozônio? Pense nisso!”
Pensei nisso e achei esquisitos os argumentos: afinal, carne também mata a fome e o plantio de soja também derruba florestas (raios, está acabado, até, com o Pantanal). Comecei a ver aí o dedo da Monsanto, da Bunge ou da Cargill.
Mas, em seguida, tudo fez sentido: os gados comem grãos e soltam puns que acabarão conosco. Por isso, temos que deixar de comer o gado e passar a comer o que eles comem. O gado morrerá de fome, e aí, os nossos puns é que serão fatais.
Voltaremos, enfim, ao canibalismo, agora justificado: como-o, porque peida!
sábado, março 19
Teolética.
- Gozado. Para mim, em sendo de esquerda, é justamente isso que me sobra...
sexta-feira, março 18
Parágrafo segundo.
Sentou-se num dos banquinhos, de costas para a mesa. E só para provocar a Céu, pegou um dos pãezinhos frescos da cestinha de vime. A negra largou o pano de prato, com que enxugava as mãos.
- Ô menina folgada! Tu é babá, não é patroa! Sai daí, que eu acordo o dotô Sílvio, e é pra já.
- Deixa de ser besta, mulher. Um pãozinho, eles não vão nem sentir falta. E eu tô com uma fome... Sonhei com homem...
- Não tô interessada nas tuas sacanagens. Come o pão logo e se arruma, que a dona Patrícia já acordou, ouvi o barulho da descarga. Daqui a pouco, vai te chamar pra vestir as crianças.
Bela Porcariazinha.
Parágrafo primeiro.
quinta-feira, março 17
So Simple, Yet So Hard...
Tom locked himself in the shed. England lost to Argentina.
These two statements, as they stand, could be quite unrelated. They merely tell you two things have happened, in the past tense.
Tom locked himself in the shed; England lost to Argentina.
We can infer from the semicolon that these events occurred at the same time, although it is possible that Tom locked himself in the shed because he couldn’t bear to watch the match and therefore still doesn’t know the outcome. With the semicolon in place, Tom locking himself in the shed and England losing to Argentina sound like two things that really got on the nerves of someone else. “It was a terrible day, Mum: Tom locked himself in the shed; England lost to Argentina; the rabbit electrocuted itself by biting into the power cable of the washing machine.”
Tom locked himself in the shed: England lost to Argentina.
All is now clear. Tom locked himself in the shed because England lost to Argentina. And who can blame him, that’s what I say.
It is sad to think people are no longer learning how to use the colon and semicolon, not least because, in this supreme QWERTY keyboard era, the little finger of the right hand, deprived of its traditional function, may eventually dwindle and drop off from disuse. But the main reason is that as Joseph Robertson wrote in an essay on punctuation in 1785, "The art of punctuation is of infinite consequence in writing: as it contributes to the perspicuity, and consequently to the beauty, of every composition”. Perspicuity and beauty of composition are not to be sneezed at in this rotten world. If colons and semicolons give themselves airs and graces, at least they also confer airs and graces that the language would be lost without.
From: Eats, Shoots & Leaves, by Lynne Truss.
quarta-feira, março 16
Carecas.
Filosofia.
“... a filosofia nunca pode constituir mera atividade profissional e universitária, desligada da intimidade pessoal daquele que a exerce. Ela é, por definição, exercício da autoconsciência, que busca sistematicamente os nexos entre o saber, o ser e o agir, na unidade da consciência individual do filósofo.
A unidade do saber, do ser e do agir é a meta de toda filosofia: é a conquista da sabedoria.
Buscando constantemente o nexo entre conhecimento e autoconsciência, o filósofo (ou, o que é exatamente o mesmo: o estudante) submete-se à disciplina da sinceridade, que se torna, de maneira lenta, gradual e segura, um caminho de ascese espiritual: o desenvolvimento do senso pessoal da verdade.”
Isso, só na propaganda do curso...
terça-feira, março 15
O Melhor do Brejil.
Mas a Globo acaba de se superar e de superar o melhor do Brejil: um casal achou uma câmera fotográfica em Trancoso (provavelmente no Quadrado, provavelmente de alguém completamente chapado) e, vejam vocês, quer devolver. Foi ao Fantástico e o filho trintão disse, juro, que o seu pai voltou a ser o seu herói, com essa atitude bacanérrima.
Era bom avisar esse povo: apropriar-se de coisa alheia é crime, previsto no artigo 169, do Código Penal. E pode gerar detenção, de um mês a um ano.
Distraídos.
Mas a pergunta que fica é a seguinte: se alguém é distraído o suficiente para entrar num elevador que não está lá, é razoável supor que vá ler a porra da plaquinha?
segunda-feira, março 14
A Senhora do Intestino.
É razoavelmente aceito, entre os bem-pensantes, que as novelas de TV (e sobretudo as da Globo) são uma grande porcaria, com muito pouca utilidade. Sua linha narrativa repetitiva vicia o pensamento na papinha pronta, exigindo apenas deglutição, nenhuma mastigação. E, além disso, enfiam-se na massa informe que se engole sem pensar, além do merchandising covarde, valores que os autores, os editores, os produtores, seja lá quem for, querem que sejam absorvidos. E tome sapatões bonitinhas, viados bem-resolvidos, comunistas desprendidos, contraventores robinhudescos, adúlteros justificados...
Isso tudo, até entendo. O que não me passa pela moela é que certos caras, bem postos na mídia, que poderiam botar avisos sobre esse lixo tóxico, se põem a fazer análise lítero-sociológicas como esta.
É um saco. E o crítico, que eu tinha em alto conceito, vira uma tia tricoteira, babando pelo próximo capítulo.
sexta-feira, março 11
The Smell of the Music.
As pessoas teriam suas trilhas como têm perfume: tomariam banho, passariam perfume, vestir-se-iam (eita, como fazer mesóclise na frente dos outros é feio!), vaporizariam suas trilhas e sairiam pelas ruas, odorizadas e musicadas, podendo fazer pose de filme em cada acorde.
Mas depois lembrei que tem gente que usa coisas do boticário e seria bem capaz de derramar um litro de um bruno&marrone pescoço abaixo, sem nenhum pudor - e dei graças a deus pelos headphones.
Sideways.
Uma vez, bestamente, me meti a fazer um curso para someliê; achava chique, sei-lá. Mas fiz, confesso. E um dos caras, obviamente italiano, disse o que é definitivo, em vinho: tudo é circunstância.
Você pode dizer que um vinho tem taninos fortes (o que é bem viado de se fazer, aliás); você pode meter seu nariz na taça e descobrir aromas de vanilla, canela, mel, o cacete-a-quatro. Não sem passar por imbecil, você pode até girar a taça, vendo se as lágrimas escorrem depressa ou devagar, se são finas ou grossas, revelando que o vinho tem mais ou menos álcool e como o álcool está nele integrado. Você pode enfim, racionalmente, classificar um vinho (têm até umas tabelinhas, também bastante aviadadas, aliás).
Mas o vinho só é bom, você só gosta do vinho, quando a circunstância é boa: a comida é boa, o clima é bom, a companhia é boa, sua roupa não está apertada, seu estômago está em paz.
Experimente tomar um Romanée-Conti acompanhando um lambari frito, no calor de Ribeirão Preto, junto com um monte de advogados discutindo agravos de instrumento ou mandados se segurança, com as calças um número menor e com gases barulhentos querendo escapulir.
Nosocômio.
“Nos tempos hodiernos a sociedade buscou meios de penalizar o infrator no local onde mais drasticamente o atingisse. E o ponto nevrálgico, que durante a revolução francesa era o pescoço, foi transferido para o bolso. Há vários doutrinadores que pensam da mesma forma, dando a visão do que é o dano e quando ocorre, e interpretando que é pagando pelo dano que o agente lesionante repara os malefícios de seus atos.”
Ele também comete um “neste nosocômio, restou cerca de um mês internada...”
Não sei como rebater essas coisas: se for estúpido, como tenho vontade, o juiz fica com dó; se não falar nada, fica a sensação do pum alheio no elevador – quem não reclama, é o autor...
Mas se o meu advogado dissesse que eu restei internado num nosocômio, juro que eu passava a procuração para outro.
quinta-feira, março 10
Estrambótico da Silva Jr.
Por falar em escrivão, dizem que o Millôr era pra chamar Milton, mas o escrivão (que, na época, escrevia à mão) exagerou nos floreios, cortou o tê mais para a frente, em cima do ô, e fez um n parecido com r. E, pronto: estava criado mais um nome nacional.
Mas tem mesmo um povo que abusa: no dia em que fui registrar o Matheus (era prá ser Dante, era prá ser Dante!), tinha um cara discutindo com o escrivão – queria, porque queria, registrar o filho como Speed Racer...
Um aluno da minha mãe, pior que isso, chama Letisgo. Ela perguntou, à que pariu a criatura, da onde sacou a pérola e ela, com ares de sabida: “É inglês. Pronuncia-se let’s go...”