quinta-feira, abril 28

Futebol em Primeira Pessoa.

Embaixo do Viaduto do Chá costuma-se reunir a nata dos desabrigados – são os que perderam tudo, de fato. Fundariam, se organizados fossem, o genuíno MST – Movimento dos Sem-Tudo. Com eles, fica uma desfamília de pivetes.

À noite, a fina-flor dos esqueitistas paulistanos - bermudões na linha dos pelos, sem camisa, pulando degraus de esqueite e esparramando maresia – coabitam, com eles, o Vale do Anhangabaú.

E no meio dessa gente desarrumada, passam os bancários, os office-boys, os escreventes, os executivos, as ascensoristas, os advogados, as atendentes de telemarketing, todos.

Ontem, um homem grisalho, baixo e gordinho, atravessava o Vale, falando no celular. De um lançamento muito mal feito, uma bola dos pivetes atravessou-lhe o caminho. Sem tirar o celular da orelha, estendeu o braço esquerdo, mão espalmada e gritou, para o moleque que já começava a correr atrás da bola perdida: “Deixa, que essa bola eu é que vou chutar!”

Deu a volta na pelota e armou a direita que, com o sapato de trabalho, saiu tortíssima. A bola, com boa força, voou na direção de um outro homem de paletó cinza-chumbo, fechado até o último botão, que também atravessava o Buraco do Diabo.

Sem soltar a pasta, o engravatado matei a bola no peito e, de sem-pulo, emendei-a para o menino descamisado, boquiabertíssimo. Ah, o orgulho de ser brasileiro!

Graças a Deus por Ser Palmeirense.

terça-feira, abril 26

Mentira, Terta?

Uma pessoa historicamente mentirosa, garantiu-me que seu blog é sério. Por isso, não publica um fato verdadeiro, que não é sério. Mentiras são sérias; a verdade é muito engraçada. Por isso – e dado que eu não estou nem aí para direitos autorais – vai a história, como ela mesma escreveu:

Prestenção que não se trata de piada, mas de caso mesmo.
Acontecido com o irmão do meu marido.
Era um final de tarde bem quente. Sexta feira. Ele estava cansadão, depois de uma super semana pesada.
Aí ele chamou um sócio dele pra tomar um gin tônica bem gelado em um bar perto do escritório.
Foram.
Sentaram-se e, quando o garçon se aproximou, ele perguntou:
“Que gim você tem aqui?”
O garçon:
“Quejim? Ó.. quejim mineiro....quejim prato, provolone...”


Não pedi licença, porque é homenagem.
E sempre que tiver coisas não-sérias prá publicar, bote aqui, faiçavor.

Politicamente do mal.

Preocupava-se João Paulo II com “o extermínio legal de seres humanos concebidos e ainda não nascidos; trata-se de mais um caso de extermínio decidido por parlamentos eleitos democraticamente, apelando ao progresso civil das sociedades e da humanidade inteira. E não faltam outras formas graves de violação da lei de Deus; penso, por exemplo, nas fortes pressões do Parlamento europeu para que as uniões homossexuais sejam reconhecidas como uma forma alternativa à família, à qual competiria também o direito de adoção. É lícito e mesmo forçoso se perguntar se aqui não está atuando mais uma ideologia do mal, talvez mais astuciosa e encoberta, que tenta servir-se, contra o homem e contra a família, até dos direitos do homem”.

De fato, basta parar para pensar um minuto para que se perceba que a corrente do pensamento politicamente correto é, toda, voltada contra a vida.

O casamento homossexual, por exemplo: não é uma união que gerará vida. Compreende-se, perfeitamente, que os parceiros de uma união qualquer queiram regular seus direitos, tal qual ocorre num casamento heterossexual. Para isso, existem contratos, que podem ser feitos livremente, por qualquer um. Também podem querer regular sua sucessão, isto é, o que acontecerá com seus bens, depois que eles falecerem. Para isso, existem a lei e os testamentos. Por que, então, insistir num regulamento próprio, para o casamento gay?

A defesa do aborto, por outra - é, evidentemente, uma tese contrária à manutenção da vida. Isso, sem exceções: quem é a favor do aborto julga, necessariamente, que há valores mais importantes que a vida.

Com a eutanásia, é a mesma coisa: não se dá chance à vida em favor do conforto de uma morte programada, ou antecipada. Não há como ser a favor da eutanásia e da vida, ao mesmo tempo.

Pelo que se percebe, a preocupação do Papa não era à toa. Bastou que ele morresse para que se especulasse sobre a eleição de um papa mais liberal, como se fosse possível que, depois da fumaça branca, aparecesse na janela do conclave, um papa barbudo, com calças jeans e mangas dobradas até o cotovelo, com um bonezinho do MST.

Para quem acredita, resta rezar para que Bento XVI seja, exatamente, o que maldizem dele.

segunda-feira, abril 18

Escravos de Jó.

sexta-feira, abril 15

On Bullshit.

Ganhei um livrinho escrito por um professor emérito de Filosofia em Princeton: "On Bullshit". Nas primeiras páginas, dizendo não ter encontrado o termo no Black's, ele disseca o similar humbug. Se tivesse caixa de comentários, já ia lascar: "Ah... é metalingüagem, é?"

quarta-feira, abril 13

Sabino.

Foi na Bienal do Livro, quando ela era, de fato, no prédio da Bienal, no Ibirapuera.
Minha mãe juntou todos os livros do Fernando Sabino que tínhamos – e tínhamos todos – e corremos para vê-lo numa palestra e, especialmente, para pegar autógrafos. Lembro que ele falou que São Paulo era mesmo separatista – até os banheiros de homem e de mulher eram em andares separados...
Depois, fomos ao estande. Eu, treze anos, com altura e cara de dez, e uma pilha de livros dele, que mal conseguia segurar. Pedi que autografasse, um por um. Ele perguntou se eu tinha lido algum daqueles livros – eu disse, sem pestanejar: “Todos” (mentira, não tinha lido o Encontro Marcado, ainda). “Então vem cá”, disse ele, e me puxou pelo braço.
Dentro do estande estava armada uma entrevista: holofotes, microfones, duas cadeiras. Ele pediu mais uma. Sentei. Era o programa “Panorama”, da Cultura.
A Glória Maria perguntou alguma coisa para ele, que disse: “Eu combinei com a Glória que ela ia me perguntar o que me dava mais felicidade como escritor. Não foi isso que ela perguntou, mas é o que vou responder: o que mais me dá felicidade é ver um menino como este aqui (câmera me mostra, olhos arregalados), que com... quanto anos você tem, Mauro?” Eu, roxo: “t-t-t-treze”. “Então, que com treze anos já leu quase tudo o que eu escrevi!”Pronto, vergonha em rede nacional – que só não foi maior porque ninguém assistia a Cultura...

terça-feira, abril 12

Homenagem a trois. Ou a Quatre.

Guinevère. Um metro e setenta e um, cinqüenta e três quilos, vinte e seis anos. Cabelos estilizados em cabeleireiro homem (gays, nessa área, estão ficando demodês), loiros escuros (ou castanhos claros, dependia da luz), lisíssimos, até a metade das costas que, apesar dos dezenove graus da noite paulistana, estavam nuas no vestido preto, de decote comportado que abraçava seios tipo Saint-Tropez. Ele se inclinava levemente, apoiando o antebraço esquerdo no beiral da sacada, para admirar a vista noturna que tinha no décimo-sexto andar de um prédio em Moema. Na mão direita, uma taça de Pinot Noir. Bourgogne, claro.

Enquanto exibia, para ninguém, imagens de telas da galeria dos Uffizi, o aparelho de DVD high-end tocava os Cantos de Hoffmann, de Offenbach. Guinevère pensava em Alexandre, e em como satisfazê-lo. Tinha uma alegria pueril, quando o via sorrir com uma tirada inteligente, ou com uma citação apropriada.

Há poucos minutos, tinha terminado Suave é a Noite, e se encantara, sobretudo, com a tradução do título – apesar de seus três anos em Cambridge, certamente teria traduzido tender como terna; jamais pensaria em suave, mesmo depois de ler o livro que, afofado pelo folhear da leitura, descansava na mesa de centro. Ela gostara muito mais deste do que do Grande Gatsby – como, aliás, Alexandre previra. Ela, impossível não admitir, só existia em função dele.

No exato instante em que começava a Barcarolle, Maria, vinda da cozinha, entrou na sala, lançando sombra sobre a sacada. Guinevère virou-se e, apontando o livro sobre a mesinha, perguntou: “Já leu este?”. Era mais um desafio, que uma pergunta. Chegar aos bons livros antes era uma questão de vida ou morte.

Maria, que trazia uma garrafa de Prosecco e uma taça esfriada, olhou por sobre os óculos (eram para perto) e, não sem certo desdém, sentou-se à frente da tela e respondeu: “Acho meio phony a descrição que ele faz da vida na Riviera.” E, servindo-se do Prosecco, disparou: “Escuta, será que eu posso trocar essa meleira do Offenbach por alguma coisa mais sólida? Tipo Puccini - ou Debussy, pelo menos?”

Era dois anos mais velha que Guinevère, e a conhecera pela internet – César, em função de quem existia, a apresentara a ela, por meio do Alexandre. Apesar do tailleur marinho, e da saia (justa, mas abaixo dos joelhos), podiam-se adivinhar suas curvas. Estudava duas horas por dia, como determinou Sertilllanges, na Vida Intelectual, que lera por recomendação de César. O livro mudou sua vida. Agora, tinha os quatro volumes do Ferrater Mora e estudava um tópico por vez: lia-os no Ferrater, depois ia às fontes – Aristóteles, Aquino e Agostinho, sobretudo. Só César era capaz de compreendê-la.

Guinevère virou-se e, enquanto voltava à sacada, fez hmmm, sem mais nada responder. Outro hábito que adquirira de Alexandre.

“Posso ou não posso?” insistiu Maria, já sentindo o calor do sangue chegar-lhe às orelhas.

Beatriz, a mais nova, saindo do lavabo ainda com o barulho da descarga atrás de si, interrompeu o diálogo, sem querer. Disse: “Bêbadas.” Suas palavras eram sempre assim: concentradas. Plúmbeas. Diretas. Completas. Das três, era a que mais falava. E a que menos palavras proferia.

Súbito, sem mais nada dizer, engalfinharam-se. O chão da sala, agora, parecia coberto de um gelatina transparente, e a luta corporal entre as três reduziu seus trajes a maiôs. Pareciam integrantes do Los Angeles.

Quando estavam exaustas da pancadaria, e os sopapos começavam a parecer carinhos, o despertador tocou e Ruy acordou, praguejando.

segunda-feira, abril 11

Borboleta, na cabeça.

Não faz tanto tempo assim: era a época em que não nos sobressaltávamos com qualquer toque de campainha. Naqueles tempos, era comum que nos escritórios, nas empresas, passassem, de quando em quando, vendedores de relógios, de perfumes, de bugigangas eletrônicas, de muambas paraguaias... Também vinham um lendário sargento do Exército da Salvação, as irmãs carmelitas e toda a sorte de andarilhos, que passavam o dia batendo de porta em porta, atrás de doações quaisquer. E não falhava, a cada semana, o vendedor de bilhetes de loteria federal.
Naquela empresa da Vila Carioca, que vendia autopeças para a Volks e para a Ford, o vendedor de bilhetes era um sorridente paulistano, filho de uma improvável mistura de migrantes do Paraná e da Bahia. Tinha uma pequena corcunda e uma perna pouco mais comprida que a outra, o que fazia com que tivesse que dar um chutinho a cada passo. Penteava seus cabelos bem pretos para o lado, com uma risca à direita. Sua pele era de cor indefinida, bem amorenada pelo sol diário das ruas. Na boca enorme, despontavam os dentes um pouco tortos e a voz, canora, decerto treinada no comércio ambulante, usava-a sem parcimônia: quando chegava, todos sabiam. Não havia quem não gostasse de ouvir dele a última piada, ou uma fofoca de algum artista da TV ou político, a quem, jurava, vendia bilhetes toda semana. Chamava-se Emmanuel, mas era conhecido como Mané Pastinha, porque sempre trazia os bilhetes numa surrada pasta de couro.
Seu freguês preferido era o senhor Artêmio, velho diretor comercial da companhia, cuja alma estava mais que amaciada, pelo contato diário, ao longo de meio-século, com vendedores e compradores de todos os tipos. Seus pacientes olhos verdes, já com os primeiros sinais de catarata, esperavam tudo, de todos; nada os poderia surpreender. Homem de família e de gostos frugais, não julgava ninguém e a todos recebia com um sorriso discreto, em que se podia confiar. Era nada menos que amável.
Era dezembro, e o Pastinha estava certo de que o seo Artêmio, ainda mais benevolente pelo espírito do Natal, compraria, pelo menos, um bilhete inteiro da federal. Depois de filar um café amargo com a Dona Lourdes, secretária do seo Artêmio, ele mesmo se anunciou, com a melhor empostação que tinha:
- Ô, seo Artêmio, vim hoje até aqui só para lhe trazer o bilhete da borboleta. É extração especial, prêmio dobrado. Esse Natal, o senhor passa mais milionário do que já é!
- Que milionário o quê, Mané Pastinha... Se tivesse dinheiro, estava na Argentina com a Nica e com as minhas dez netas. Me dê cá esse bilhete que o treze, hoje, vai me dar sorte.
Sempre se lembrava daquela viagem a Buenos Aires: tinha fretado um ônibus e levou a Nica, sua única e eterna esposa, as filhas e o filho, os genros e a nora, todas as netas, o seu sobrinho e toda a sua família. Pagou tudo: hotéis, restaurantes, passeios. E nunca foi tão feliz: se tivesse dinheiro, repetiria.
Comprou logo dois bilhetes – a borboleta, final 13, e o touro, 82. Um, enfiou, com cuidado para não dobrar, na maletinha que sempre carregava. Chamou a Dona Lourdes e pediu para pôr o outro no cofre: era para os seus funcionários. Dividiria o prêmio, se tirasse a sorte grande.
Na empresa, era conhecido pela sua benevolência – até seu sócio, que cuidava do caixa com ciúmes de amante, dizia: “Deixa de ser besta, Artêmio. Tira umas férias, leva a família, que a empresa agüenta. Depois, é só trazer umas notinhas, que eu reembolso tudo – e ainda descontamos do Imposto de Renda!”
Mas, qual o quê. Para o seo Artêmio, tirar dinheiro qualquer da empresa, sem que fosse seu pro labore mensal, era sacrilégio. Ia, por isso, adiando o sonho argentino.
Quando saía da empresa, no fim daquele dia, todos, já devidamente avisados pela indiscrição da Dona Lourdes, agradeciam o bilhete e riam, dizendo que iam pedir ao Papai Noel que sorteasse os números certos.
Aquela noite, sonhou que passeava sob a lua cheia, numa montanha verde, da Itatiba de sua infância. Quando acordou, tinha certeza que ia dar borboleta: sonhar com montanha, com árvores, com lua, só podia ser borboleta, na cabeça.
Era véspera de Natal, a extração ia acontecer depois do almoço do dia seguinte, ao vivo, pela televisão. Tinha que trocar os bilhetes, o quanto antes.
Inventou à Nica que tinha que comprar um presente de última hora, para o vizinho do lado direito, e acelerou a velha perua Veraneiro para a empresa, onde entrou sem que ninguém o visse: tinha a chave do portão de entrega de mercadorias. Deixou o carro na rua, desarmou o alarme, foi à sua sala, abriu o cofre e, com um suspiro de alívio, trocou os bilhetes. Conseguiu sair, ainda, sem que ninguém o visse - naquela época, ainda não existiam as câmeras de vigilância. Mas, quando ainda estava com a chave na porta do carro, teve um sobressalto que quase o fez cair duro: o Mané Pastinha subia a rua, com seus chutinhos, assobiando o “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos.
- Ô, seo Artêmio, que boa fortuna, a minha! Ver o senhor na véspera do Natal é uma alegria! Pena que já vendi todos meus bilhetes...
Sem saber o que responder, Artêmio sorriu para o corcundinha, tentando pensar. Tremia tanto que mal conseguiu terminar de abrir a porta, pegar um panetone no banco do passageiro, e entregar para o Mané:
- Toma Mané, leva para os teus meninos. Não sei se te avisaram, mas a empresa entrou em férias coletivas: só voltamos dia 15 de janeiro.
- Foi bom o senhor me dizer; não sabia não. Assim não perco a viagem. Um bom ano prô senhor e pra toda a família.
E foi se afastando, alegre com o presente inesperado, e agora cantando: “Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui...”
- Jesus Cristo! pensou o velho Artêmio, suando frio, dando partida na Veraneiro.- Quase me pegam. Mas acho que até o dia 15, ele já esqueceu.
Voltou para casa, não sem antes comprar outro panetone e uma garrafa de espumante, para o vizinho da direita.
Passou o Natal com toda a família, que ia aumentando, à medida que sua netas começavam a trazer os primeiros namorados. Se fosse levar todos para a Argentina, desta vez, tudo ia ficar mais caro...
Dormiu tranqüilo e, desta vez, sonhou com borboletas mesmo: não precisava nem interpretar, para ter certeza do resultado da extração.
No dia seguinte, sorria ao ver todas as suas netas, falando e rindo todas juntas, numa tagarelice feminina, muito familiar, exibindo os presentes que ganharam. Depois do almoço de Natal, recostou-se na sua poltrona e esperou, confiante, o resultado da extração, pela TV.
Não se espantou nem um pouco, não mexeu uma sobrancelha, quando a atriz-e-modelo, de gorrinho com pompom, bustiê e microssaia vermelha, tirou a primeira bola, com o número 8. Depois, uma mais loirinha, também à la Noel, sorriu para a tela, com o número 3 nas mãos. Uma mulatinha apresentou o 4. Outra morena tirou o 1 e, enfim, o próprio apresentador, saltitando entre as noeletes, exibiu o último número: 3. “Oitentetrês-mil, quatrocentos e treze: borboleta, na cabeça!”, berrava às câmeras, bendizendo o felizardo ganhador.
Só uma das dez netas percebeu o sorriso no canto da boca do avô. Achou melhor não comentar: ele, decerto, olhava para as pernas das mocinhas.
No dia seguinte, voltou à empresa – que, claro, não estava em férias coletivas. Chamou a Dona Lourdes e, seguindo o script que mentalizara, pediu a ela que pegasse, no jornal, as dezenas sorteadas. Ela se animou: só agora lembrara do bilhete comprado antes do Natal.
- Será que estamos ricos, seo Artêmio? O prêmio é de quinze milhões!
- Abra o cofre, Dona Lourdes, abra o cofre. Vamos ver o que é que deu.
A secretária deixou cair os óculos, antes de se pendurar aos berros no pescoço do seo Artêmio, que já ria, como criança. O bilhete que estava no cofre era o do primeiro prêmio: borboleta, na cabeça!

sexta-feira, abril 8

Sutaque.

Não sei se é vicio ou virtude, mas sofro da síndrome de Zelig, sobretudo na sua variação fonética: não consigo ficar perto de alguém sem falar como essa pessoa fala.

Isso rende muitos risinhos abafados no escritório, quando atendo algum telefonema do Rio e começo a estender as vogaaais, a botar um h depoish de cada s e chaamaaar uis caaarash de mermããão.

Minha mulher me cutuca, sempre que vamos à Bahia, achando que eu estou falando mole daquele jeito para gozar o garçom.

Mas tem suas vantagens: há alguns anos, em Cinque Terre, embora o meu italiano nunca tenha saído da Moóca, só com o meu involuntário sotaque enganei um velhinho, que me deu um quarto ótimo, na pensão, achando que eu vinha de Salerno. O downside é que ele falou italiano como se estivesse falando com um vero napolitano e eu (embora sorrisse e confirmasse tudo) não entendi lhufas, só o nome de uma praia (Guvano).

No dia seguinte, curioso para ver a tal praia, descobri que lá se chega por um antigo túnel ferroviário. E horas de caminhada mais tarde, num túnel escuro e sujo, desembocamos, eu e minha mulher, numa praia de nudismo, cheia de italianos chapados. Tive que botar meu sotaque em ação de novo, para explicar o engano e cair fora vestido e ileso.

O que o velhinho me dizia, eu só soube mais tarde: vá a qualquer lugar, só não se meta na Spiaggia di Guvano...

quarta-feira, abril 6

Vecchio.

Não sei se foi o Boff ou o Betto; sempre confundo os dois. Talvez tenha sido até outra pessoa, de igual ou similar calibre.

Mas alguém disse que o Papa João Paulo II, no final, revelou-se um liberal, porque limitou em 70 (ou 75, não estou certo) anos a idade dos cardeais que escolherão o seu sucessor. E completou o Bettoff: todos sabem que os mais idosos tendem a ser mais conservadores. Por isso, o Papa queria menos conservadores, votando. Logo, era uma liberal!

Esqueçamos, por um momento, a monumental bobagem que está embutida no sofisma.

Mas uma de suas premissas é interessantíssima: os mais velhos tendem a ser conservadores.

Vamos juntar outra, também certamente defendida pelos Boffetos de hoje em dia: os mais velhos são mais sábios.

Logo...

Aforismos II.

Aforismo é preguiça de desenvolver o raciocínio.

Aforismos I.

Perspicácia simula inteligência.

terça-feira, abril 5

Duas propagandas horrorosas.

Uma, a do Nestea. Diz, mais o menos, o seguinte: “somos a favor de tudo que é natural, mas topamos o silicone”. Ora, que cazzo o silicone tem a ver com o chá? Quem toma chá fica com peitão? E se for homem, fica com chance de papar umas turbinadas? Pobreza, pobreza.
Outra, a do Kuat. Pelamordedeus, botar dois adolescentes com os linguões explícitos, um na boca do outro, é apelar demais para a obviedade hormonal da molecada. Isso, sem contar que enche o saco explicar para uma criança de quatro anos porque a moça está lambendo a boca do moço.
Vendo essas coisas nos outdoors da 23 de maio (procurei na internet, mas não tiveram coragem de repetir, aqui, o que estamparam nas ruas), deixo de estranhar que a moral dos publicitários aceite sangrentas rinhas de galo como a coisa mais normal do mundo.

segunda-feira, abril 4

Vai encará?

“E daí? Cê liga prô que os outros pensam?”
Eu ligo, sim.

sexta-feira, abril 1

João Paulo II.

Como estudava em colégio de Salesianas, em 1978, tive dois feriados – um, quando faleceu o Papa Paulo VI; outro quando, pouco tempo depois, morreu João Paulo I. A figura do falante polonês sempre foi agradável – mas, para mim, nunca muito mais do que isso. No Brasil, esteve muito pouco, menos do que eu julgava necessário. Os católicos de cá ficaram um pouco órfãos, nestas duas últimas dúzias de anos.
De qualquer modo o livro dele, apesar das críticas desmedidas que sofreu, pareceu-me bastante útil para compreendê-lo melhor. Em boa parte, o Papa defende, simplesmente, a bondade como valor humano. Pode parecer bobagem, mas não é: hoje, só concebemos que se faça um bem a outra pessoa se o agente também se beneficiar. Altruísmo soa falso; bondade pura parece burrice. Talvez se o Papa tivesse estado aqui mais vezes, enquanto tinha boa saúde, pudesse empurrar um pouco mais dessas suas idéias subversivas.