Terminei o Zarolho, está todo aí, abaixo. Mudei um pouco o texto. Não pensem que escrevo tudo e depois fico fazendo suspense, publicando aos pouquinhos, velho golpe para ganhar audiência. Não: escrevo o começo e já ponho no ar, obrigando-me a seguir, depois. É para isso que tem servido este blogue - que fez um ano já, vejam só - fazer com que eu me obrigue a fazer o que eu gosto, de vez em quando.
A estória do zarolho é toda inventada. Qualquer semelhança com a realidade é azar.
Comentários, seja qual for o tom, são bem-vindos. Para isso, afinal, é que se escreve num blogue.
1.
Era um juiz zarolho, mas não nasceu assim: seus olhos foram se afastando, um do outro, com o passar do tempo, como se um quisesse andar reto, e o outro insistisse em desviar-se do caminho.
No começo, o desvio era ligeiro, quase imperceptível. Ele até achava um pouco charmoso, quando treinava, no espelho, um malicioso olhar de baixo para cima.
Mas, com o tempo, foi ficando genuinamente zarolho, suas duas pupilas se repelindo a cada dia e esbugalhando os globos oculares, a ponto de perguntarem, os mais íntimos, se ele tinha alguma doença cardíaca (há quem acredite que doenças cardíacas esbugalham os olhos). Sua saúde, no entanto, era perfeita, não fosse estar ligeiramente acima do peso – o que, com o seu metro e noventa, não era sequer um problema estético.
Nem sua visão piorou: tinha miopia e astigmatismo desde pequeno, e os graus de uma e de outro não aumentaram fora do esperado (afinal, passava os dias lendo processos, e suas vistas deviam, mesmo sofrer alguma conseqüência).
A zarolhice o incomodava mais que tudo: odiava as piadinhas (um olho no peixe, outro no gato; quando pede a uma moça para dançar, saem duas etc.), odiava os que não conseguiam olhar para ele, nas audiências. E odiava a cara apatetada que acabou adquirindo – embora fosse casado com a mesma mulher havia mais de dez anos, era muito vaidoso, gostava de insinuar-se para as advogadas, estagiárias e funcionárias que freqüentavam a sua sala. Zarolho, sentia-se ridículo.
Tentou de tudo: seu clínico geral, os três oftalmologistas e um cardiologista (que consultou, porque, afinal, nunca se sabe, vox popoli...) não souberam dizer a causa do esbugalhamento e do enzarolhamento dos seus olhos, menos ainda indicaram alguma possibilidade de cura. Não havia casos similares em sua genealogia, nem qualquer causa física aparente. Fez exames de toda espécie, que não acusaram absolutamente nada de errado. Um oculista chegou a recomendar óculos escuros, como única solução.
Embora fosse católico (rezava à noite, e tinha até um crucifixo, na sala de audiências), procurou mesas-brancas e pais-de-santos. Fez simpatias, rezas; tomou bênçãos e passes. Usou guias, arruda, figas. Plantou espada-de-são-jorge, comprou pimenteiras, usou sal grosso. Tudo em vão. Nem tratamento homeopático, que tentou por meses e meses, tomando as bolinhas sem faltar, deu resultado: continuava cada vez mais zarolho, cada vez mais esbugalhado.
E ele estava certo de uma coisa - era só essa estapafúrdia zarolhice que o impedia de ascender ao Tribunal: era o juiz mais antigo da primeira instância, seus processos estavam em dia, tinha pouquíssimas representações contra si e julgava cada processo com cuidado. Só permitia a estagiários e escreventes ambiciosos que fizessem os relatórios das sentenças: as decisões, a fundamentação e a parte dispositiva, ao menos, ele mesmo as redigia.
Além do mais, sua família tinha tradição na magistratura paulista. Seu pai e dois de seus tios tinham sido desembargadores. Um deles, honra da família, chegou a ministro do Supremo (mas só ocupou o cargo por alguns meses, aposentando-se, em seguida, com o salário de ministro). Enfim, tendo estirpe, não sendo incompetente, nem desonesto, só podia culpar a zarolhice pela sua longa estagnação na primeira instância. E a culpava, pois.
2.
Numa reunião semanal, que alguns juízes estavam se habituando a fazer num restaurante bacaninha, ouviu de um desembargador um pedido nada inusitado: o caso assim-assim, por favor, veja lá, dê uma olhada com carinho: “a autora é viúva, minha cunhada, não tem quem olhe por ela. E depende dessa ação para tocar a vidinha, sabe como é. Não quero nada demais, só que examine com calma o processo e, se achar que não dá, me avise”. Respondeu como sempre respondia a essas solicitações familiares: “claro, claro, não se preocupe, não nego nada a quem tem razão”.
Tinha uma tática definida, para esses casos: apressava a decisão, mas, fora isso, julgava conforme suas próprias convicções. Se achasse que o solicitante tinha razão, não a negava e, antes de divulgar a sentença, ligava, avisava que atenderia ao pedido (às vezes até fazia um charminho, brincando com um ou outro argumento mais frágil do solicitante) e nunca pedia nada. Se dessem, bem; se não, outras vezes haveria, e a estória haveria de ser outra.
Já nos raros casos em que achava que o solicitante não tinha razão, sentenciava, registrava a sentença e, no dia em que devolveria o processo ao Cartório, ligava para o solicitante, lamentando não poder atender ao pedido, porque suas convicções estavam do outro lado. Se não angariava simpatias, com isso, ao menos o solicitante passava a vê-lo com um misto de raiva e respeito, que não lhe era de todo desagradável.
Mas foi, então, ver o caso do novo pedidinho.
3.
Não era um casinho à toa, não senhor. Era uma reintegração de posse de uma área enorme, que estava invadida por barracos de favela, na zona sul da cidade. Perto de shopping e, veja só, praticamente vizinha à Rede Globo. A peça inicial tinha sido distribuída poucos dias antes, e pedia a liminar entrega da posse à autora, senhora de setenta e poucos anos e que, por isso mesmo, reclamava andamento processual acelerado.
Ele não tinha sequer lido a inicial. O carimbo revelava que tinha sido distribuída depois das seis da tarde e o advogado que a levou, não o tendo encontrado (saía sempre perto das seis), despachou com o juiz auxiliar que, já sabendo como trabalhava o seu titular, meteu um “J. conclusos, com urgência.”, para que o processo fosse ao colega zarolho, um pouco mais rápido.
Examinou um mapa, que a requerente apresentou: ela queria, nada mais, nada menos, que um terço da imensa favela. “Tocar a vidinha o cacete” – pensou. “Uma área dessas deve valer mais que dez, doze milhões. E o cunhadão, safado, de olho no espólio da viúva...”.
Além do mapa, tinha escritura, tinha certidão da matrícula, tinha pagamento de carnês de IPTU, tinha fotografias, tudo. “Uma liminar fácil”, pensou. “Mas não vou conceder, não”.
Fechou os olhos esquinados, enquanto pensava. Reclinou a cadeira e trançou os dedos sobre a gravata Dormeuil. (Se alguém entrasse na sala de audiências, aquela hora, poderia perceber que as pálpebras revelavam globos mais saltados que o normal: ele não deixava de ser zarolho, nem com os olhos fechados).
Primeiro, tinha a questão social: sabe-se lá quantas famílias de excluídos vivem naquela área, hoje? Injusto desalojá-los assim, jogando-os na rua. Teria que conversar, antes, com a Prefeitura, com a Polícia Militar. Talvez até com o governador. E tudo por conta de um título de propriedade de mais de cento e vinte anos, em favor da família quatrocentona da velhota. Não, não.
Depois, era uma grana razoável, caramba. Só os advogados iam beliscar, por baixo, um milhão! E ele, que daria a cara a tapa, metendo o jamegão na liminar, o que ganhava? O que ganhava por expor-se à imprensa e, quem sabe, até à fúria dos favelados? Nada!
Não, definitivamente negaria a liminar. Talvez até julgasse extinto o processo logo de cara: era só achar uma razão formal qualquer, para não ter que entrar no mérito e, voilá, mãos limpas; processo resolvido – e ninguém receberia honorários. A única coisa era que... bem, doía deixar passar a oportunidade.
4.
Na hora do cafezinho, um colega, mal falado pelos seus trejeitos ligeiramente efeminados, afastou-se da mesa, cujos pequenos e dourados croissants atraíam os juízes como moscas, e chamou o zarolho com o olhar, querendo dizer-lhe algo.
Hesitou, porque não gostava de ser visto perto do bichinha. Mas o outro insistia, agora com um arquear de sobrancelhas e um arregalar olhos que passavam um pouco dos limites da virilidade média. Aproximou-se.
- Olha, eu imagino que você não goste de falar no assunto, mas meu sogro tinha um problema na vista igual ao seu.
- Ora, que... queísso... Gaguejou, surpreso: primeiro, pelo bichinha ter um sogro – era casado mesmo, então? Depois, por ele ter sido tão direto num assunto que ninguém ousava sequer mencionar, na frente dele.
- Não, não diga nada, não. Eu entendo. (Tirou um cartãozinho do bolso do paletó). Esse aqui é o médico do meu sogro, ortomolecular. Resolveu o problema em pouco mais de um ano.
- Ortomolecular? Repetiu, sem saber o que pensar.
- É. Esse desencontro dos olhos, segundo o médico do meu sogro, é resultado de um desequilíbrio químico. Depois de uns exames, o médico descobre do que o teu organismo está carente e supre a falta, com vitaminas, minerais, essas coisas. Os olhos, com o tempo, voltam para o lugar.
- Ah, tá, obrigado, obrigado. E metendo o cartãozinho no bolso: - Vou pegar um café, quer?
- ‘Brigado, já tomei.
Aliviado, o zarolho voltou para o grupo dos homens. “Ortomolecular o cacete”, pensou. Mas, no dia seguinte, pediu à assistente de sala para marcar a consulta. Nunca se sabe, nunca se sabe.
5.
Tempos depois, contrariando a sua idéia inicial, e já incomodado pela própria demora em analisar a liminar, decidiu chamar o ex-desembargador, que pedira o “favorzinho”, para conversar. O velho não quis ir ao Fórum: fez questão de levá-lo ao Piselli, pedir um bourgogne para acompanhar o pappardelle alla moda pentagna, e dois cálices de sauternes, para arrematar.
O velho pagou a conta, confiando apenas na palavra do zarolho, que prometia a solução a ideal. Ninguém, senão ele, poderia tê-la imaginado. E ninguém, senão ele, poderia colocá-la em prática.
O preço? Foi gentil: vinte por cento do valor recebido, no final. Ad exitum, como dizem os advogados. Exigiu adiantados, apenas, cem mil dólares, numa conta estrangeira, que o seu doleiro indicaria para o velho. Confirmado o depósito, daria os detalhes.
A idéia fora concebida no banheiro, enquanto, mirando-se no espelho, tirava, com uma pinça da mulher, os pêlos mais salientes do nariz.
Do nada, teve a idéia. Era ousada, mas funcionaria: concederia a liminar, sob a condição de que não fosse cumprida para valer. Os advogados da velhinha, proprietária do favelão, tentariam executar, chamariam a polícia, convocariam a imprensa. Podiam até combinar antes com os moradores, com alguma associação de moradores, o que fosse.
Tinham que fingir que não havia meio de reintegrar a velhota na posse do terreno. Umas mulheres chorando, umas crianças com ar de desamparo, quem sabe umas bombas de efeito moral. Não era difícil de arranjar – aliás, era até provável que acontecesse assim mesmo, naturalmente. No fim, apareceria alguém de alguma Pastoral, ou de alguma ONG, ou de algum movimento social. Alguém poderia deitar-se à frente de um carro da polícia ou, melhor: alguém poderia sofrer alguma escoriação, preferencialmente com algum sangramento no couro cabeludo, na orelha, onde ficasse bem visível. O juiz conversaria com os oficiais de justiça, para acertar o conteúdo da certidão: a retomada do terreno era impossível.
Depois, transformariam a reintegração em desapropriação indireta, movida contra o Estado - afinal, o governo tem que prover a moradia dos excluídos, mas também há de garantir o direito de propriedade dos incluídos, caramba. Logo, se um sacrossanto direito não podia se concretizar, sem afetar o outro, cabia ao Estado pagar a conta, indenizar.
O favelão seria desapropriado, e todos ficariam felizes: a velhota teria uma vitória moral; o desembargador poderia controlar o andamento da desapropriação, conversar com os peritos avaliadores para darem “valor de mercado” ao imóvel e, se precisasse de dinheiro rápido, podia vender o crédito contra o Estado, com um desagiozinho, para empresas que devem impostos, para compensarem. “Eu posso até indicar algumas”, sorriu para a sua imagem no espelho. “Com um modesto finder’s fee, claro”.
Enfim, os favelados continuariam onde estavam e quem pagaria a conta seriam os contribuintes. Os mais ricos, no final, pagariam a conta dos mais pobres. “Justiça social”, convenceu-se, orgulhoso.
Olhando-se assim, de perto, no espelho, surpreendeu-se (seria a medicina ortomolecular, já fazendo efeito?): seus olhos dezarolhavam-se.