No sábado, criei vergonha na cara e fui fazer o exame médico da carteira de motorista, vencida desde os 40, em novembro passado. Fui um rebelde por seis meses, correndo o risco de ser, sei lá, preso, exilado, ou jogado numa escolinha para retardados do trânsito.
Aliás, numa noite de janeiro um guarda rodoviário me parou na Rio-Santos, como que adivinhando minha ilegalidade. Eu me apressei, honestíssimo, dizendo que meu exame médico estava vencido, não tive tempo, sabe como é. Ele, por cima dos óculos de grau: “mas é só isso, mesmo? O carro está em ordem?”. “Está”. Não estava – minha mulher, a quem o destino e eu incumbimos de pagar as contas, esqueceu-se de fazer o licenciamento. Escapei, exclusivamente, graças à bondade do guarda e ao meu dom para dramatizar as coisas do cotidiano, porque tinha trinta reais na carteira e não tive coragem de tentar um suborno tão mixuruco.
Apesar do susto, não fui renovar a carteira – foi só a perspectiva de ter que dirigir na Itália, em julho que vem, que me tirou da inércia: talvez o meu italiano não seja suficiente para escapulir ileso de uma blitz napolitana.
Fui, então, ao lugar-de-exame-médico (que não é escritório, não é consultório, não é loja: é o lugar-de-exame-médico). Uma senhora simpática, também por cima dos óculos de grau, me fez um monte de perguntas indiscretas, na frente de outros pacientes-motoristas que aguardavam ali, na recepção: se eu tinha pressão alta, se eu era diabético, se tinha alergias e, cáspita, se eu usava drogas (disse que não, claro. Mas acho que mesmo que eu usasse, não ia confessar na frente daquela pequena multidão de motoristas). Pegou meus documentos e mandou que eu esperasse.
Dois minutos depois, me chamou e mandou que eu falasse com uma mulatinha, que estava sentada ali mesmo, mas de costas para mim, com seu cabelo escorrido, como se fosse uma folha de papel negro e cintilante, sobre uma jaqueta-jeans. E não era uma jaqueta-jeans assim, normal: era daquele jeans que parece sujo de terra, meio amarelado, sabe? Aqueles a gente vê no camelô e pergunta: mas quem é que usa isso, Deus-do-céu? (Agora, pelo menos, já sei: a mulatinha do exame médico). A jaqueta era curtinha, só ia até a metade das costas, e fazia par com a calça, um número menor que a bunda, de modo que, com ela sentada, dava para ver uma calcinha de renda preta – na verdade um elástico na cintura e o início de um insuficiente triangulinho de pano preto, que deve fazer as funções originais da peça. Dessas que a gente vê no camelô e pergunta: mas quem é que usa isso, Deus-do-céu? (Pois é).
A mulatinha, com olhinhos apertados (não fosse pela pele escura, o cabelo preto escorrido e os olhinhos apertados fariam dela uma japonesa de nariz mais largo), mandou – mandou mesmo, juro, com aquele ar de superioridade de quem está na própria rotina e não quer ser incomodado – mandou que eu conferisse na tela os meus documentos. Balbucei, “certo, certo”. Botei o dedo três vezes numa luzinha vermelha e fui mandado de volta para a espera.
Menos de dois minutos depois – a rapidez espantou a todos os que estavam na sala de espera, inclusive a mim, que não entendi a razão do privilégio, e o resto lançou-me olhares de ódio e inveja – fui conduzido à sala da médica. Comecei a tirar as coisas do bolso, mas ela riu: “é com roupa mesmo...”.
Mandou que eu olhasse numa máquina, que deve ter servido para testar o olho de Camões, adivinhando umas letrinhas lá no fundo e depois soltou um flash na minha cara, perguntando se eu conseguia enxergar um “ene” – “Viu o “ene?” “Ahn? Sim, ene, claro!” Tornou a perguntar se eu usava drogas e eu neguei de novo (mas me arrependi, porque talvez ela estivesse oferecendo, e teria sido rude negar).
Já preenchendo minha alforria, elogiou minha visão 20/20, mesmo aos 40, dando ensejo a que eu defendesse a minha tese de que os óculos são os responsáveis pela degeneração da vista. Li em algum lugar que os músculos em volta do globo ocular precisam de exercício, e os óculos os acomodam. Por isso, quanto mais você usa óculos, mais precisa usar – e constatar isso é fácil: você já viu alguém que, usando óculos, ficou curado?
Com um inesperado ar de cumplicidade (chegou até a olhar para os lados, para ver se alguém a vigiava, acho eu), ela disse: “Mas é isso mesmo! Vivo dizendo para minha filha, que também é oftalmo, para não usar óculos! Eu não uso, vê?” Claro que eu via: “20/20, lembra? Ha-há”. Ela fingiu que não escutou essa bobagem e emendou: “Então: eu não uso, e minha miopia regride a olhos vistos” (ou quase isso. Acho que esse trocadilho já é meu, não sei mais). “Minha filha usa, e daqui a pouco, vai ter que operar!” “Que bom”, disse o retardado que coabita o meu corpo. “Pelo menos há quem a opere de graça...” Com essa pérola de inteligência e delicadeza, torcendo a boca numa expressão de desencanto, ela entregou o documento que prova a minha perfeita saúde ocular e me dispensou. Creio que o barulho que ouvi, ao sair, foi ela trombando com a porta, que deixei entreaberta, mas não tive coragem de voltar.
Voltei à senhora da recepção, paguei R$ 47,00 (de onde saem esse números? Por que não R$ 45,00 ou R$ 50,00, de uma vez?), e saí rápido, antes que algum dos outros já impacientes motoristas resolvesse tirar satisfações pelos meus inexplicáveis privilégios. Ganhei a rua com o peito cheio de orgulho e disposto a olhar tudo, só para exercitar.
Portanto, patrulheiros rodoviários, policiais de trânsito, marronzinhos, e população civil em geral, podem sossegar: não sou mais um rebelde. Terei, em breve, carteira válida. A menos, claro, que saia tudo errado porque, cáspita, quem é que podia conferir número de CPF com aquela calcinha preta sob uma visão 20/20?