Justiça II, epílogo.
5.
O oficial não gostava de computadores, não queria ter um notebook. Mas, de freqüentar a Heliópolis, que estava na região onde entregava seus mandados, e para onde sempre ia, gostasse ou não, tinha adquirido um certo gosto por maconha e cocaína.
O oficial não gostava de computadores, não queria ter um notebook. Mas, de freqüentar a Heliópolis, que estava na região onde entregava seus mandados, e para onde sempre ia, gostasse ou não, tinha adquirido um certo gosto por maconha e cocaína.
No começo, comprou de curiosidade – maconha, na faculdade, era normal; coca, só para os mais malucos. Agora, cheirava - mas não achava que era maluco. Bobagem de criança. Mas era um hábito caro, e o salário de oficial, mesmo com todos os benefícios, mais as diligências que cobrava por fora, não bastavam - até porque um terço do que ganhava ia para a pensão da filha, que ficou com a vaca da ex-mulher. Por isso, estava sempre atento a alguma oportunidade extraordinária. E, desta vez, um notebook que valia uns dois paus – pelo menos uns cinqüenta papelotes – veio a calhar.
Quando caminhava para o boteco onde faria a troca, um moleque forte, que passava de peito estufado e gingando com os ombros, mostrou um 22 na cintura da calça jeans e mandou que entregasse a mala, com o notebook. Na antecipação pelos papelotes que estava a ponto de receber, hesitou, e procurou o seu 38 nas costas – mas estava desarmado, sempre vinha desarmado para a Heliópolis. Foi o suficiente para receber dois tiros rápidos, um no rosto, outro no pescoço. A dor aguda no maxilar cedeu aos poucos, na medida em que sua aorta aberta tingia o barro da favela. Antes de morrer, sentiu puxarem a alça do notebook e darem-lhe um chute forte nos quadris.
6.
Depois da partida, que ganhou com mais dificuldade que esperava, convidou o publicitário para ver um DVD recém-comprado, com o Milton Nascimento cantando na Suíça. Não percebeu que, no fundo, torcia para que Zildinha ainda não estivesse em casa. E, de fato, não estava.
Quando caminhava para o boteco onde faria a troca, um moleque forte, que passava de peito estufado e gingando com os ombros, mostrou um 22 na cintura da calça jeans e mandou que entregasse a mala, com o notebook. Na antecipação pelos papelotes que estava a ponto de receber, hesitou, e procurou o seu 38 nas costas – mas estava desarmado, sempre vinha desarmado para a Heliópolis. Foi o suficiente para receber dois tiros rápidos, um no rosto, outro no pescoço. A dor aguda no maxilar cedeu aos poucos, na medida em que sua aorta aberta tingia o barro da favela. Antes de morrer, sentiu puxarem a alça do notebook e darem-lhe um chute forte nos quadris.
6.
Depois da partida, que ganhou com mais dificuldade que esperava, convidou o publicitário para ver um DVD recém-comprado, com o Milton Nascimento cantando na Suíça. Não percebeu que, no fundo, torcia para que Zildinha ainda não estivesse em casa. E, de fato, não estava.
Abriu duas Cerpas e um pacotinho de mixed nuts. Ligou a sua aparelhagem – que dizia ser high end – e convidou o publicitário para sentar-se. “Vou melar todo o couro, ainda estou suado!”, disse ele. “Deixe de frescura”, respondeu, rindo.
Zildinha – que estava num flat de uma amiga separada, com ela e três garotos de programa – avisou pelo telefone que iria jantar fora e só chegaria depois das onze. Era quinta-feira, e eles tinham combinado que, às quintas-feiras, eles poderiam fazer seus própros programas. "Cada um por si, mas com respeito", era o que tinham ajustado.
Enquanto Milton Nascimento e Wagner Tiso repetiam a Travessia, o publicitário, já na terceira Cerpinha, perguntava ao juiz se ele tinha reparado, na Santa Ceia do Da Vinci, se o apóstolo João tinha tetas, mesmo. Sem dar a resposta, o juiz segurou-lhe a coxa com a mão direita e inclinou a cabeça, avançando para o beijo, louco para encostar seu peito na camisa do publicitário, ainda úmida de suor.
7.
No dia seguinte, apesar de um certo desconforto na parte de trás, não se sentia gay. Era isso, ser gay? Não, achava que não. Ele nunca desmunhecaria, nem falaria como uma mulherzinha.
7.
No dia seguinte, apesar de um certo desconforto na parte de trás, não se sentia gay. Era isso, ser gay? Não, achava que não. Ele nunca desmunhecaria, nem falaria como uma mulherzinha.
Ainda estava na cama – já com a Zildinha que, graças a Deus, chegou muito tarde e não quis sexo – quando foi avisado, pelo telefone, da morte do oficial. Ficou aborrecido: teria que ir logo ao Fórum, emitir uma Portaria decretando luto oficial por um dia e comparecer ao enterro. Talvez tivesse que dizer algumas palavras de consolo aos familiares.
Depois do banho e de vestir o paletó escuro, com a gravata Zegna azul clara, já estava de melhor humor, lembrando que disporia do carro oficial e poderia chegar mais cedo em casa, vindo direto do cemitério. Saiu cantarolando: “eu não quero mais a morte, tenho muito que viver; vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer”.
Depois do banho e de vestir o paletó escuro, com a gravata Zegna azul clara, já estava de melhor humor, lembrando que disporia do carro oficial e poderia chegar mais cedo em casa, vindo direto do cemitério. Saiu cantarolando: “eu não quero mais a morte, tenho muito que viver; vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer”.
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Os fatos e as personagens são todos ficcionais. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência, além de pura maldade do autor.
7 Comentários:
Aêêêê!
É arte! É arte!
Maravilha.
É nada, Radá. É só catarse...
catarse é uma das definições de arte.
Alguma relacao entre a data da publicacao e a "descoberta" do juiz?
Beleza de texto. Vou partir para as partes I e II.
"Cada um por si, mas com respeito". Excêntrico. ;-)
Oi, Claudia. Pode fazer parte, mas não é a mesma coisa.
Anonymous. Não sou budista, mas coincidências não existem...
Nemerson, obrigado.
Ludovico: já foi excêntrico. Hoje é ordinário, ordinário...
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