segunda-feira, agosto 1

Justiça II, Parte II.

3.
Pelas cinco da tarde, como não havia mais audiências, decidiu o juiz voltar para casa. O dia estava claro, quem sabe ainda jogaria tênis, no condomínio, com o publicitário do 14°, de quem sempre ganhava com alguma facilidade (e por cujas pernas tinha uma fascinação que não conseguia explicar). Avisou sua auxiliar de sala, vestiu o paletó, já procurando as chaves do carro – o motorista tinha levado a Zildinha ao dermatologista, e ele tivera que vir guiando.

A Zildinha, que coisa, que coisa. Por mais que ela passasse os dias na academia, por mais que ela se bronzeasse, por mais que se vestisse sempre com roupas de vitrines caras, não o atraía mais. Sexo era esporádico e obrigatório, sem volúpia, quase asséptico. Seus prazeres eram o tênis e o home theater: era capaz de assistir dois filmes pela manhã, antes de almoçar e ir ao fórum. Gostava de filmes de ação, com muitos efeitos, para tirar o máximo de seus aparelhos da Bang&Olufsen.

No caminho, passou, sem saber, na frente da empresa falida. Os funcionários, até a velha secretária, já tinham ido embora. O oficial, ao lado do auxiliar do síndico, terminava de colar o ofício de lacração na porta. Carregava uma mala de notebook.

4.
A velha secretária levara o 22 sem saber ao certo porquê. No momento em que pegou a arma, pensou em se matar: sem a empresa, sua vida de mãe solteira, já esvaziada da filha única – que morrera ano antes, atropelada – não teria mais graça nenhuma. Agora, contudo, já no ônibus que a levava para casa, achava uma grande bobagem. Não teria coragem de disparar; talvez nem tivesse força para apertar o gatilho.

Ao descer do ônibus, pensando no que faria se a firma não abrisse mais, não percebeu um moleque forte, que passou do seu lado já correndo, e arrancou-lhe a bolsa do ombro. Menos mal: nela só foi o 22, uns lenços de papel e umas cartelas de Tylenol, para a eterna enxaqueca. Os documentos, e o pouco dinheiro que tinha, carregava sempre numa carteira, na mão, que caiu ao chão no impacto com o ladrão, mas não foi levada.

Não pôde deixar de sorrir. O sinal foi claro: Deus ainda tinha alguma missão, para ela.

3 Comentários:

Blogger Odorico Leal disse...

Uma missão para ela e, sendo justo, uma missão para ele, o pivete, agraciado com uma 22.

*

A cidade é Fortaleza. O problema aqui não é exatamente o calor, porque a brisa do mar alivia. O problema é mesmo a claridade. Não há cidade tão terrivelmente clara quanto Fortaleza. O que ao menos gerou um bom livro de poesia, "Beira-Sol", de Adriano Espínola. Se encontrar, sugiro que compre, que vale a pena.

Abraço,

1.8.05  
Blogger mauro disse...

Ô, Ludovico.

Sombras e escuridão às vezes fazem falta. No excesso, porém, também atrapalham - se o sol de Fortaleza fere, experimente passar uns dias entre os antigos arranha-céus do centro velho de São Paulo: vais voltar correndo para a luz...

Abraços,

Mauro

2.8.05  
Anonymous Anônimo disse...

estou gostando... continue.

2.8.05  

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