terça-feira, julho 12

Justiça II, parte I.

1.
“Para que me preocupar, meu Deus, para quê?”. Eram seis anos na magistratura e, em tempo recorde, já ocupava a sala de titular do fórum central de São Paulo. Nesse tempo – e de tanto ouvir seu pai, desembargador aposentado, falar – tinha aprendido: quem contrata advogado muito bom, em regra, não tem razão.

Por isso, naquele caso, um pedidinho de falência sem importância, resolveu não pensar muito: a defesa, esmerada, abordava questões jurídicas relevantes - o protesto irregular, a citação nula e outras coisas mais. Mas a devedora não fez o depósito e, ainda por cima, tinha contratado advogados bons. Decidiu com o estômago, como também recomendava seu pai. E decretou a quebra.

Como é de hábito, para evitar que os ladrões falidos se escafedam com os bens da empresa, manteve a sentença em sua própria sala, impedindo que qualquer um tivesse acesso. Também como de hábito, nomeou síndico um japonês com quem jogava futebol-de-salão às sextas, e que sempre lhe pareceu honesto, apesar de uma ou outra reclamação de advogados. “Advogados sempre reclamam”, pensava. “São pagos para isso”.


2.
O oficial de justiça, com um auxiliar do síndico (o japonês só comparecia nos casos grandes), foram à fábrica falida e encontraram uma velha secretária, com dois telefonemas a atender, que lhes pediu um minuto. O oficial, maldoso, pôs o dedo no receptáculo do telefone e cortou as ligações. Temendo assalto, a velha senhora empalideceu e perguntou o que queriam, afinal. “Acabou, vovó. Vai prá casa, que cê tá aposentada.”, riu o oficial. “Vamos lacrar a empresa. Faliu.” Explicou o recém-formado preposto do síndico, um pouco constrangido com a desnecessária rudeza do oficial.

“É o caso da Set Factoring, não é? Nós não devemos nada para eles! Pagamos juros por dois anos, e o Doutor Carlos está cuidando do caso, não nos avisou…”. O preposto, de novo: “Olha aqui, minha senhora, não posso discutir o caso. Vou fazer a arrecadação dos bens e lacrar o imóvel. Se resistir, tenho que chamar a polícia.”

“Posso ao menos ligar para o Doutor Carlos, ou para o meu patrão, que está em Sorocaba?”

“Pode, mas da rua. Não vamos esperar nada.”

“Está bem, está bem. Vou chamar os meninos, para pararem tudo e irem para casa.”

Avisou, por um velho intercomunicador que dava num alto-falante da fábrica, que o expediente estava encerrado. Dois ou três, dos vinte e poucos funcionários da fábrica, vieram à porta da sala da diretoria, ver o que tinha acontecido. A velha secretária explicou: “Nada. Esses homens vão fechar a fábrica, mas nossos advogados estão cuidando do caso. Voltem na segunda, que é o dia do vale.”

Os operários, que confiavam na secretária como em suas mães, foram, sem discussões, com olhares desconfiados para o rapaz engravatado e para o oficial de justiça, que trazia uma bolsa de nylon preto, com a alça atravessada no ombro.

“Posso ao menos pegar minhas coisas nas gavetas?” disse a velha secratária para as costas do oficial de justiça, que namorava um notebook deixado em cima da mesa da sala ao lado e, displicentemente, respondeu “Pode, mas vá logo. Não temos o dia todo.” Não viu, por isso, que a senhora juntava um pequeno 22 aos seus porta-retratos, mousepads, escovas de dentes.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

ai a velha matou os dois?
matou o advogado (que não era tão bom)?
se eu fosse sua editora diria: seus leitores não estão acostumados com as rotinas legais...mas seu estilo continua impecavel. Economico, emocionante, surpreendente.

13.7.05  
Anonymous Anônimo disse...

vim reler. se eu fosse sua editora estaria, provavelmente, dispensada por justa distração. Agora que vi que se trata do primeiro capitulo. Go ahead, estou curiosa.

13.7.05  

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